Doenças da Viola
Basta haver amor por determinada cousa, para que o homem lhe empreste imediatamente certos atributos humanos. A viola, instrumento que maior número de amantes tem tido entre o povo do meio rural brasileiro, por isso mesmo padece das muitas doenças que atormentam o ser humano. A viola se resfria, se "constipa", apanha "quebranto", fica rouca ou fanhosa, se "destempera" e chega até a ficar reumática.
As doenças da viola seriam provenientes desse antropomorfismo que lhe é atribuído pois tem braço, costas, boca, ilharga, orelhas (cravelhas), "cacunda", pestana, etc., ou da afeição que identifica instrumento e tocador?
De médico, poeta e louco todo mundo tem um pouco e o violeiro cuida da saúde de sua viola: contra quebranto, galhinho de arruda no seu interior, jogado boca a dentro em noite de 6a. feira, na primeira após a compra do instrumento; há um processo de magia simpática para dar melhor "voz" às cordas, colocando um guizo de cascavel. E contra todos os fluidos prejudiciais, nada melhor do que uma fita vermelha para desviar o mau olhado e a inveja. E bom violeiro é sempre invejado! Tocar viola é uma cousa tão almejada que chegam a fazer pacto com o diabo na 6a. feira santa, conforme assinalamos em nosso livro "Alguns Ritos Mágicos".
Quer ver violeiro contrariado, é um estranho tocar em sua viola ou pedir licença para "arranhar as cordas". Lá com seus botões o violeiro fica mandando ele arranhar... Bem, não diz nada, mas pensa. A mão de estranho "destempera" porque transmite eflúvios maléficos ao seu instrumento. . . é pior do que se "botasse mau olhado".
Além da fita, e esta não deve ser confundida com aquelas de promessa que os violeiros das folias de Divino carregam como ex-votos, raro é o violeiro que não tenha escondido um amuleto sanitário: uma figa, um signo de Salomão, intrometido na palheta.
Há violas que se "constipam", isto é, que se resfriam só pelo fato de serem guardadas com as cordas encostadas á parede que lhe transmite umidade. Violeiro que se preza não a dependura assim e sim a mete num saco para guardar num gancho ou prego. À noite estando sozinha, sente frio, porque nas braços do violeiro, ela sente calor. Mas, há violas que precisam tomar sereno para ficar com boa voz, para "declarar bem". Outras, com o sol se arruinam e chegam a se "destripar", descolam o tampo dos aros: é a insolação.
Antes de guardar a viola, deve-se passar um pano sobre as cordas, num sentido só, "para não lhe tirar o sentido", endoidecê-la: do trasto para a palheta, assim ela não ficará fanhosa.
Até o enfeite das violas é amuleto sanitário: a pintura de flores em sua tampa ajuda a afastar o quebranto. E as flores escolhidas são aquelas onde predomina o vermelho, por exemplo, as flores da maravilha (mirabilis jalapa, Lin.) com as quais as crianças ainda hoje fazem colares e antigamente os violeiros, principalmente os negros, colocavam-nas na pescoço nas romarias de São Gonçalo ou nos pousos de cururu. E' por isso que Antonio Adão (Antônio Rodrigues de Lara) - o poeta das flores, pretalhão de dois metros de altura, tem uma viola cheia de fitas e flores de maravilha pintadas, como assinalou o folclorista João Chiarini. E' a constância de certos traços culturais que permanecem. E' uma forma medicinal de evitar as doenças de sua viola que foi feita pelo saudoso piracicabano Juca Violeiro (José Antônio Maria), mulato quase centenário que ali no Bairro Alto, à rua Morais Barros, na minha cidade natal (Piracicaba) fazia violas, verdadeiros Stradivarius caipiras - mochinhos e violas - guardados alguns exemplares nesse fabuloso museu do "Centro de Folclore de Piracicaba".
Não há viola lunática, mas todas sofrem influência da lua. Na lua nova e "na força da lua" não se guarda viola afinada, ela pode ficar "corcunda", entortar, "estuporar", bem como rebentar a corda. Madeira para viola deve ser cortada nos meses que não tem "r" (maio, junho julho, agosto) e na minguante para nunca apanhar caruncho, Viola com caruncho é leprosa.
Violeiro que se preza não carrega viola debaixo do braço e sim na mão, segurando-a pelo seu braço. "Viola é mulher, e quem sai com ela na rua, vai de braço dado. Violeirinho de meia pataca é que põe a viola debaixo do braço. O sovaco é lugar de encostar a muleta e não a viola". Viola carregada debaixo do braço fica reumática, não afina mais, fica mancando das cordas.
Embora o viola tenha lá suas doenças, é inegável o poder que ela possui para curar as doenças quando tocada em romarias para São Gonçalo do Amarante. A viola nas danças do santo português - padroeira dos violeiros, além de arrumar casamento para as moças que vão ficando para "tias", cura também reumatismo. Quem num cateretê "pisar nas cordas da viola", isto é seguir-lhe o ritmo, sem errar, jamais ficará doente dos pés, das pernas, nunca terá "veia quebrada" - varizes. E' portanto um preventivo maravilhoso que só os catireiros têm o privilégio de possuir.
Se por um lado há doenças da viola, por outro ela tem grande função medicinal. Ela cura as doenças, mata a saudade, elimina a tristeza, realiza a psicoterapia profunda melo-medicinal. Acontece que a função medicinal da música é cousa velhíssima O grande salmista Davi, conforme registra a Bíblia, tocava a sua harpa para alegrar o hipocondríaco Saul para curá-lo da misantropia que o assaltava de vez em sempre.
Repete-se com o instrumento predileto do nosso caipira - a viola - o mesmo destino medicinal da harpa - ela cura as doenças dos homens tristes. Quem resiste à alegria contagiante de um cateretê riscado nas cordas de uma viola? Qual é o reumático que não entra e desenferruja os ossos sob o ritmo desencarangador de uma dança de São Gonçalo? Qual é o "descadeirado" que não participa da um fandango valsado ou toma o "suadouro" de um "recortado" de fim de pagodeira quando os violeiros já entrevem "barra do dia" dealbando no horizonte e a função vai se smorzando?
A lei da compensação ai está: o bom violeiro cuida de sua viola para que ela não apanhe doenças, seja sempre sã, e ela recompensa, uma boa viola, bem tocada dá alegria para o homem e já dizia Salomão nos seus Provérbios: "O coração alegre aformoseia o rosto, mas pela dor do coração, o espirito se abate".
E' por isso que "violeiro morre é de velho"